
Mulheres enfrentam o machismo e assédio em duelo longe do fim
Treze de Março de 2018. Estádio São Januário, Rio de Janeiro. Começava a primeira rodada da fase de grupos da Copa Libertadores para o Vasco da Gama. Como de costume na maioria dos jogos de futebol, os torcedores vascaínos se aglomeram ao redor do estádio. Cervejas, os famosos espetinhos e batuques que entoavam os cânticos pré-jogo, prenunciavam a noite de entusiasmo e alegria daquele ambiente, no aguardo da recepção de seus jogadores que iriam duelar logo mais naquela noite de terça-feira. Porém, nem tudo é festa. Entra em campo o primeiro jogador que, no lance inicial de jogo, já merece cartão vermelho. O assédio.
A repórter Bruna Dealtry, do canal Esporte Interativo, que mostrava justamente o clima que antecedia a partida, foi surpreendida em sua entrada ao vivo. “Ai!", gritou assustada. “Isso não foi legal né, não precisava, mas aconteceu e vamos seguir o baile por aqui”, tentou a repórter contornar o infeliz ocorrido, após um torcedor tentar beijar sua boca a força. Em seu Facebook, Bruna repercutiu o caso e comentou que adora festa de torcida, não se importa com “banho de cerveja”, pisões no pé, torcedores pulando, que se deixa levar pela emoção e sentimento dos torcedores. Mas ressaltou a sensação de impotência que diversas mulheres sentem nos estádios, exercendo sua profissão, ou até mesmo nas ruas.
Após inúmeros casos de machismo e assédio contra as repórteres e demais mulheres que trabalham com futebol, esse incidente foi o estopim para o surgimento da campanha #DeixaElaTrabalhar nas rede sociais. Através de um grupo de cerca de 50 jornalistas mulheres de todo o Brasil, a hashtag ganhou muita força em poucos dias, por meio de um vídeo com alguns dos relatos já sofrido por elas. (O primeiro deles, é o de Bruna, veja o vídeo).
“Campanha que mexeu muito comigo, porque nos sentimos muito sozinha nessa luta”, entusiasma-se uma das participantes da causa, Fernanda Varela, repórter de esporte no Jornal Correio, no Nordeste. Fernanda nasceu com o futebol. O caderno da Barbie, ou do Snoop, deu lugar ao do Bahia, seu time de coração desde a infância. Confessa que na intimidade de uma mulher, ainda mais quando criança, é muito difícil conviver sendo observada como alguém ‘fora da normalidade’ perante a sociedade.

A baiana conta com frustração um dos casos que teve que lidar na sala de aula. Os dizeres são de seu professor na época: “Estranho né? Menina que gosta de futebol”. Fernanda ainda relata que pessoas questionavam o fato dela gostar de futebol, e seu irmão, na posição masculina, não ser muito ligado ao esporte. “Meu pai era meu grande companheiro, ele levava meu irmão, mas meu irmão sempre odiava, e aos três anos eu pedi para conhecer. Fui, e não deixei de ir mais. Ele me ensinou tudo, já fui até de macaquinho com o joelho quebrado para o estádio”, comenta de forma alegre.
Formada em publicidade e propaganda e posteriormente em jornalismo, Fernanda Varela começou a estagiar no Jornal Correio em 2013 e, após dois anos, foi contratada em definitivo. “Eu sempre falo para o meu chefe que tenho orgulho de ser contratada por ser competente e não por ser mulher, de preencher cota, ou por ser a menina bonitinha... eu não gosto disso”. Apesar disso, ela sabe que por mais que exista uma conscientização sobre a participação e crescimento da mulher no futebol, alguns paradigmas ainda não foram quebrados neste âmbito.
Ela ainda comenta sobre o preconceito existente nas redações, como editores não questionarem mulheres sobre esporte, pressupondo a falta de conhecimento do gênero neste campo, ou até mesmo ignorar sua presença. A jornalista também relata a falta de estrutura em alguns estádios para receber a mulher. A setorista do Vitória informa que não foram planejados banheiros femininos no estádio do time, o Barradão.
A ignomínia social brasileira é cada vez mais exposta no futebol. A Copa do Mundo de 2018 realizada na Rússia escancarou, por exemplo, a questão do assédio contra a mulher. No maior torneio futebolístico, envolvendo variadas nações, um vídeo que mostra brasileiros cantando e incentivando uma estrangeira a entoar versos pejorativos e machistas viralizou nas redes sociais. O repúdio e indignação tomaram conta de diversos usuários denunciando o comportamento do grupo. Infelizmente tal hábito tem se tornado cada vez mais comum em nosso país. (Caso disponível em diversas páginas, como no catraca livre).

Foto: Lucas Capeloci - Palestra Mulheres no Esporte - PUC-SP
A pauta da mulher no esporte cresceu ainda mais com os infelizes registros durante a Copa. Assunto esse debatido na PUC-SP, no dia 14 de agosto de 2018. Organizado pelo Coletivo Feminista Libertas, do curso de psicologia da faculdade, as convidadas para o evento foram Juliana Camilo (psicóloga de esporte), Roberta Nina (jornalista do blog Dibradoras), Giulia Bruno (adm do Canal Giutube FC) e Selma Felerico (professora de Marketing Esportivo).
Criado em 2015, por e para mulheres, o blog Dibradoras fala sobre a cultura e participação feminina no esporte, seja jogadora, treinadora, árbitra ou torcedora, a fim de dar uma maior visibilidade a essas mulheres. Roberta Nina comenta sobre o esporte ser culturalmente associado à figura masculina, um dos motivos para o surgimento do projeto.
O ano era de Copa do Mundo feminina (2015), que ocorre sempre um ano depois da edição masculina. A falta de informação sobre o torneio e a importância que ele tinha para as mulheres motivou, em parceria à rádio Central3, a elaboração de um podcast, com pelo menos uma entrevistada toda semana, com ex ou atuais profissionais. A temática sempre se volta para a dificuldade das mulheres em adentrar um cenário culturalmente reservado para o homem. História de meninas tendo de jogar entre meninos, passando por preconceitos, seja de colegas ou familiares, é uma das realidades abordadas.

Twitter da página @dibradoras
Mediadora da palestra e dona do canal Giutube FC, Giulia Bruno conta sobre a idealização de seu canal no YouTube, instigada pela falta de informações sobre o futebol feminino, seja em sites ou aplicativos relacionados ao esporte. Palmeirense e estudante de psicologia na PUC, fala sobre a acessibilidade e resistência das mulheres ao estádio de futebol, conectando o esporte e a política, ao citar o exemplo das iranianas que em seu país não podem frequentar o campo, e na Copa do Mundo tiveram essa possibilidade.
Apesar da situação do Brasil ser melhor que em alguns países mais restritos como o Irã, a universitária cita a luta da mulher por seu espaço, relatando a falta de banheiro feminino em alguns estádios, fato também elucidado anteriormente com Fernanda Varela.
Giulia aproveita a brecha para lembrar o movimento Mulheres de Arquibancada, que luta pela igualdade entre homens e mulheres nos estádios, nas arquibancadas. O grupo troca experiências e luta para melhoria do cenário machista no futebol.

Um dos assuntos levantados no debate por uma das 22 mulheres presentes no local (apenas 5 homens) foi sobre a propriedade que os homens têm para falar sobre futebol: "eu achava que os meninos tinham alguma genética diferente, porque sempre falavam com tanta propriedade", desabafa. A jovem diz que também tinha a tal propriedade, mas por ser menina não se sentia no direito de tecer comentários a respeito.
Roberta Nina mergulha nesse ponto e pondera que cada vez mais as mulheres estão conquistando seu espaço no cenário esportivo. A jornalista e integrante do blog Dibradoras comemora uma maior participação feminina na cobertura da Copa do Mundo na Rússia: "a gente já está quebrando essas barreiras com a presença dessas mulheres".

Foto: Lucas Capeloci - União Lapa x Rosanegra ADF no Santa Marina Atlético Clube
Sábado, 8 de setembro de 2018. A várzea ficava na Avenida Santa Marina, Água Branca, Zona Oeste de São Paulo, que liga os bairros da Freguesia do Ó e Bom Retiro. Era o festival de dois anos da refundação do União Lapa Foot Ball Club, time fundado no mesmo dia (01/09/1910) que o famoso Sport Club Corinthians Paulista. Os rumos das duas organizações são bem distintos, mas neste dia quem chamou atenção foi o União, que junto ao ‘Rosanegra Ação Direta e Futebol’ encerraram o festival em um jogo com duas equipes mistas.
Horizontalidade, apartidário, libertário, empoderamento das mulheres, políticas contra o racismo, machismo, sexismo. Essas são algumas das principais características do movimento, coletivo e time Rosanegra ADF.
Os dois times amadores aproveitaram o festival para ampliar o projeto de futebol feminino dentro da favela do Moinho, no Campos Elíseos, arrecadando chuteiras e colocando algumas garotas dentro de campo no jogo final. A ação com a comunidade teve início na Copa Moinho em 2014, em paralelo a Copa do Mundo no Brasil, em que o Rosanegra foi um dos convidados a participar do evento. Adriana Albuquerque, jogadora do Rosa, comenta como surgiu essa participação.

Viviane e Alynne, também integrantes e jogadoras do coletivo, comentam sobre o machismo e o espaço da mulher no futebol, esporte culturalmente predominado por homens. “Na minha concepção isso é muito complicado, porque é uma desconstrução muito pesada, a gente está falando sobre um contexto sócio-histórico muito antigo”, lamenta Viviane sobre a atual situação da mulher. Acredita em uma solução a longo prazo, baseada na educação, e em ter conceitos diferente de homem e mulher, já que é algo ainda muito enraizado em nossa cultura.
Alynne completa descrevendo a importância da mulher em ocupar espaços já "reservados" a homens. “Tipo no Parque Dom Pedro, quando a gente chegou nas primeiras vezes, foi sempre bem hostil. E conforme o jogo vai rolando, as pessoas vão percebendo que dá para jogar de igual”, dialoga com otimismo sobre a resistência das mulheres nas quadras e campos de futebol.

Na roda do bate papo estava Raíssa, de 15 anos, que iria jogar logo mais pelo Rosa. Ela e outras garotas fazem parte do projeto que a equipe faz com a comunidade da Zona Sul de São Paulo. A garota comenta que sempre gostou mais de coisas de meninos. A bola e o vídeo game sempre ocuparam o espaço das bonecas em sua infância. Disserta que aos poucos foi conquistando o lugar nas quadras junto aos garotos.
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